10 fevereiro 2009

Tim Winton narra, em 'Fôlego', saga de um surfista adolescente.

Quem não pega onda, espere só um segundo. Porque, se alguém aí pega, melhor remar já para a livraria: mais raro que o surf em primeiro plano – como paixão central de um livro de ficção – só mesmo esse livro ser uma beleza. Agora sim os demais: quem estiver cansado de jogos de linguagem, em busca de enredo ágil, escrito com sutileza e fluência, sem medo da emoção – “o humor e a dor entrelaçados a uma soberba simplicidade”, como escreveu Bukowski sobre Pergunte ao pó, de John Fante – terá no romance Fôlego (Tradução: Juliana Lemos, Argumento, 256 páginas, R$ 32), do australiano Tim Winton, de 48 anos, o exemplo de uma narrativa que desliza com elegância por todas as ondas.
O olhar adulto – quatro décadas depois – do paramédico Bruce Pikelet sobre a própria adolescência na Austrália dos anos 1970, entre a apatia dos habitantes de sua cidade natal (incluindo os pais) e o fascínio com a descoberta do surf nas redondezas, ao mesmo tempo que confere maturidade às lembranças mais extraordinárias – e elas são muitas – também deixa transparecer com precisão as hesitações e excitações da época. Na literatura enxuta do premiado Tim Winton – autor de contos, romances, ensaios e livros infanto-juvenis adorados por lá e desconhecidos por aqui – os silêncios dão a dimensão e a graça dos personagens, tanto naquilo que disfarçam em diálogos quanto nos momentos de dúvida, raiva e entrega.
Amigos opostos
É assim que Pikelet vai se revelando e (re)descobrindo seus limites e os dos outros, num quarteto que inclui o corajoso e inconsequente amigo Loonie, o guru místico do surf Sando, e a mal-humorada e misteriosa esposa dele, Eva. Com temperamentos opostos, mas gostos em comum, Pikelet e Loonie crescem entre desafios declarados e secretos, e cada vez mais arriscados (como prender a respiração e enfrentar ondas gigantes), naquela linha entre a amizade e a competição que fica ainda mais tênue quando passam a disputar a atenção de Sando, o melhor surfista do pedaço. Contra a vontade dos pais, os garotos frequentam sua casa de madeira, onde uma Kombi velha, um cachorro vermelho, pranchas novas, muita maconha e brigas com Eva compõem o exotismo que os encanta e fisga para além do esporte.
Cada vez que Pikelet recua – ou encolhe os ombros, sem saber reagir – ali está um menino a procura de si mesmo, tateando aventuras e relações como quem avalia em que ponto a coragem vira imprudência; a sabedoria, vaidade; a rejeição, autodesprezo. Como em muitos romances de formação, o protagonista tenta se situar no mundo à medida que enfrenta o medo e se rebela contra os padrões, mas, em Fôlego, é apenas ao mergulhar de cabeça no extremo oposto – simbolizado pela adrenalina do surf – que ele concebe outras arestas com que se preocupar, algumas das quais, uma vez rompidas, nunca mais se recompõem. Inebriado pelo poder de fazer tão cedo algo tão belo e viril, Pikelet vê seu desconforto se estender do tédio da rotina sem as ondas aos prazeres e riscos da vida sobre elas.
Ritos de passagem
Uma vida cujo estilo lhe impõe (quase) à força os ritos de passagem da juventude, oferecendo as fontes de comparação que faltavam entre o menino que ele foi e o homem que ele quer ser. Da casa dos pais à de Sando, das garotas a Eva, dos conterrâneos a Loonie, da escola ao mar, da monotonia à maluquice, da solidão à liberdade, dos livros de aventuras à vivência delas, há um adulto em (re)construção – atrás de um sentido – e um autor em estado de graça. O pouco que sabemos do Pikelet de hoje já tem peso suficiente para expor não só o abalo que sua adolescência alternativa produziu, mas também o impacto da história de Tim Winton. Se, por um lado, ele lembra Hemingway, com o culto natural e a narrativa mareada de leveza, por outro usa o surf como Nick Hornby usou o rock em Alta fidelidade, como uma paixão que, manifestada em detalhes, fala mais sobre os personagens do que sobre o objeto em si.
Daí sua habilidade – rara em uma literatura contemporânea como, por exemplo, a brasileira – em atingir tanto a surfistas quanto a meros banhistas literários, de novos a calejados leitores, dos jovens aos antigos. Oscilando entre o clássico e o atual, entre maturidade e inocência, sofisticando por dentro o atrativo popular, em pleno domínio da difícil arte de escrever fácil, Tim Winton dá a Fôlego o tom preciso para um romance de alto nível, acessível e cativante do início ao fim. Holden Caulfield, no clássico O apanhador no campo de centeio, de J.D. Salinger, dizia que “bom mesmo é o livro que quando a gente acaba de ler fica querendo ser um grande amigo do autor, para se poder telefonar para ele toda vez que der vontade”. Pois aí está um capaz de deixar muito marmanjo, no mínimo, querendo mandar um e-mail.
Felipe Moura Brasil, jornalista e escritor, JB Online

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